Temos de imaginar o seguinte: na véspera do início dos trabalhos de preparação para este projeto, o estúdio do artista Rigo23, ficou inacessível, por imposição de uma cerca sanitária no concelho de Câmara de Lobos, na ilha da Madeira. Vivendo na fronteira do concelho, foi como se os materiais para as obras que dali iria surgir, ficassem em silêncio, em bruto, num devir desejado. Mais do que incompletas, inteiramente potenciadas.
Ao mesmo tempo, em tudo quanto estes meses de confinamento permitiram definir que papel poderia a criação artística desempenhar na formação de um discurso que não fosse somente reativo, a paisagem, as suas gentes, as memórias destas e as marcas pressentidas, tornaram-se no próprio projeto.
No fundo, a obra saiu da forma, o discurso tornou-se mais amplo, deixou de confluir para uma só dimensão e assumiu-se como parte integrante do quotidiano.
Sensivelmente a meio deste processo de pesquisa e reflexão, a Bienal BoCA, em colaboração com a Fundação de Serralves, emitiu UNI VER SÓ, um vídeo-instalação de Silvestre Pestana, criado em 1985, e onde este se dedica a experimentar a possibilidade de diálogo com os objetos, mediado pelo olhar de uma câmara que regista a experiência física.
Uma e outra obra conviveram na artificialidade do espaço-tempo comum a que diligentemente nos dedicámos nos últimos meses. E um e outro artista, criando relações atemporais a partir do espaço, do lugar, dos materiais e da memória, construíram, agora, uma genealogia artística que é falsamente linear mas não deixa de ser biográfica e territorial.
Como podem, então, dois artistas construir um mesmo espaço a partir de intenções e de princípios comuns que sejam, ao mesmo tempo, possibilidades de diálogo sobre temáticas que, de modos mais diretos e explícitos, a intuitivos e reflexivos, quiseram sempre questionar se estamos a falar do mesmo quando falamos de direitos, margens, antropocentrismo e identidade?
A resposta é um mistério mas um mistério que se deseja participado e testado. Na plataforma Second Life, hoje elemento quase arcaico da experimentação virtual, Silvestre Pestana convida Rigo23 para uma exposição duplamente virtual.
Primeiro, porque o encontro entre os dois parte de obras que ficaram por criar e obras já existentes, numa relação de significados e oportunidades de recontextualização. Segundo, porque a existência de um espaço virtual regressado num contexto em que a virtualidade é a forma mais presente de se conviver, permite que os discursos dos artistas sejam, eles próprios, a obra de arte.
Ou seja, é na intenção, no discurso e na formulação de questões que as obras surgem e, com elas, ou através delas, a possibilidade de resgate das histórias do que ficou por criar, de quem foi ultrapassado pela gentrificação oportunista e pela reorganização espacial e temporal da memória geográfica.
Na multiplicidade e na plasticidade imaginada dos diversos objetos, que carecem de descrições para se tornarem matéria e real, surge a possibilidade de reconstrução de uma outra temporalidade: a da memória. Eventualmente, para sempre suspensa numa segunda vida. Como a vida que os materiais deixados para lá do cordão sanitário começaram a escrever.